quarta-feira, 24 de março de 2010

O dia em que Felipe Cuper enlouqueceu

Tá aí um texto meu. Feito na época em que eu estava tendo aulas de fotografia e visitava muito o laboratório da universidade. Há alguma influência de Clive Barker e a tentativa de criar um mito. Enjoy!

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O dia em que Felipe Cuper enlouqueceu


Era um dia como qualquer outro quando Felipe havia esgotado todas as poses do filme em sua câmera. Tirara fotos realmente incríveis dos pássaros no bosque da universidade e agora se dirigia, satisfeito, para o laboratório de revelação do seu pavilhão. O crepúsculo dava pinceladas alaranjadas no céu azul, e naquele horário Felipe já não via quase ninguém pelos corredores do prédio. A intimidade com alguns professores o garantira a posse temporária das chaves do laboratório. Era um quarto não muito grande, com cerca de 5 metros quadrados, construído especialmente para evitar a entrada de qualquer feixe de luz, cercado por pias e armários numa única bancada nas paredes.

Calmamente entrou na sala escura. As luzes acesas, ele abria os armários em busca dos equipamentos necessários para a revelação. Assoviava tranquilamente, em meio àquela atividade já comum na sua rotina. Fechou a porta e apagou as luzes, enquanto tirava o filme do bolso e seguia, apoiando-se nos armários, para o local onde havia deixado os equipamentos. Estava sozinho no preto.



Felipe sempre teve medo do escuro quando criança. Com a idade isso se perdera, mas ainda ficava curioso com o movimento das sombras no negro, uma impressão que tinha quando se encontrava em algum lugar muito escuro, provavelmente algo que poderia ser facilmente explicado por um oftalmologista. Não era algo que realmente o preocupasse, não tinha o que temer. Na verdade, até se divertia com as fumaças mais escuras que o próprio escuro, que apareciam no canto de seu campo de visão, toda vez que fixava o olhar em algum ponto qualquer.



Ele agora se esforçava para abrir o rolo em sua mão. A tampa estava um pouco torta, o que dificultava o processo. Nada pelo qual já não tivesse passado antes. Quando finalmente conseguiu abrir, o excesso de força o fez se perder com os dedos e derrubar o filme aberto no chão, que rolou para o meio da sala. “Merda!” – ele falou. Irritado, se ajoelhou e começou a tatear o chão no escuro. Ia andando de quatro pela sala, esticando os braços por todos os lados, fazendo movimentos circulares em busca do objeto perdido.

Estava já entretido na tarefa quando algo subitamente o paralisou. Em suas costas, ele sentiu uma leve pressão, causada por alguma consistência tão gélida que esfriava sua pele mesmo por baixo da camisa. Arregalou os olhos no escuro, não conseguindo imaginar o que poderia ser. Movia-se uniformemente, numa velocidade tão baixa que o arrepiava mais a cada milímetro que avançava, deslizando pela sua clavícula, dando a volta pelo seu pescoço e repousando em seu ombro. Meu deus, era uma mão! Uma mão gélida que surgira do nada, no meio de uma sala trancada e vazia. Felipe não fazia idéia do que estava experienciando. Não conseguia acreditar. Não existia explicação. Naquele momento, todo o medo de sua infância voltou de uma só vez, justificando-se no frio cortante em sua espinha, revelando-se nos seus cabelos arrepiados. A irracionalidade instintiva do seu medo de escuro tomava forma naquele instante. Eram apenas ele e a mão naquela sala. A mão gelada que pousava sobre sua camisa, e apertava o seu ombro. Um aperto tão frio quanto a temperatura do seu corpo. Um aperto sem sentimento, que nada dizia. Se tinha algo dizer, Felipe não entenderia. Não conseguia pensar em nada. Seu coração batia rápido, seu sangue corria gelado, seu corpo estava imóvel, paralisado de pavor. Só podia esperar pelo pior, mesmo que ele não fizesse idéia do que poderia ser pior que aquilo naquele momento. Esperava a morte. Não conseguiu se lembrar de prece alguma, não sentia a existência de Deus, não confiava mais em nenhuma crença. Era só ele e a mão, e toda a sensação de mal que seu toque trazia. Então lentamente, ela começou a recuar. Com a mesma velocidade que o abordara, ela agora se afastava, percorrendo em seu retorno o mesmo caminho que usara a princípio, ate que Felipe não a sentisse mais. Fechou os olhos. Era agora, ia morrer. Estava certo disso. Pensou na sua vida e em como ela acabaria. Morto, sozinho numa sala escura, sem fazer idéia do que o havia assassinado. Imaginava as perguntas que se fariam frente àquele mistério. Sabia que ninguém poderia descobrir o que aconteceu. Sabia que aquilo não era desse mundo. Ia morrer e era só.

Um minuto se passou. Um minuto e nada. Apertava os olhos cada vez com mais força, numa espera inquietante. Dois minutos. Nada. Três, quatro. Ainda estava ali, vivo, o frio na sua espinha não cessara, mas estava vivo. Sem saber de onde viera tal força, se levantou, as pernas tremendo, duras como pau. Deu um passo e cambaleou, apoiando-se na pia. Sentiu um pouco da água gelada em seus dedos e se arrepiou mais ainda. Lentamente foi andando até a porta. A cada passo, imaginava a mão tocando novamente o seu ombro, um golpe fatal, a morte, o fim da vida. Mas continuou. Continuou e finalmente alcançou seu destino. Destrancou a porta e tateou a parede em busca do interruptor. Acendeu a luz. O clarão ofuscou seus olhos ainda fechados. Tinha medo de abri-los. Ainda de costas para a sala, com a cabeça de frente à porta, os abriu vagarosamente. Respirou fundo. Tinha que se virar. Tinha que ver o que o açoitara. Num movimento rápido, num nuance de coragem, ele girou em seu próprio eixo, só para encontrar a cena mais aterrorizante que seus olhos jamais viram. A sala continuava vazia, ninguém no lugar, nenhum sinal do dono daquela mão. Mas as pias, meu deus! As pias estavam transbordando com sangue! Olhou para os seus dedos, tremendo de pavor, e gritou ao vê-los encharcados, vermelhos. Felipe entrou em pânico. Gritou descontroladamente. Sentia seus sentidos enfraquecerem. Ia desmaiar. Num ultimo esforço, ele abriu a porta e caiu no chão, do lado de fora, apagado. Não sonhou. Não dormiu. Sua mente jamais se recuperaria daquelas visões. Sua alma havia sido destruída. Como havia pensado antes, ninguém poderia explicar o que aconteceu ali. Nem ele, nem perito nenhum. Sua mente se partiu naquele momento. Felipe havia cedido à loucura.

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